24.1.08

GATO NO SOFÁ VII

A FRASE
Globalisation allowed the US to suck up the savings of the rest of the world and consume more than it produced.
George Soros, Financial Times, 23 de Janeiro

A loja de gelados e os EUA
Na série Seinfeld há uma cena memorável. Uma loja de gelados começa a fazer sucesso com sorvetes “light”. As filas são enormes porque aquele produto não engorda. Seinfeld desconfia, manda analisar os gelados e chega-se à conclusão que tinha 40% de gordura e, portanto, era uma falsificação. Seinfeld denuncia a loja de gelados e aí acontece o que não se esperava – os clientes obesos revoltam-se contra ele porque arruinaram a sua felicidade. Se olharmos para a crise despoletada pelo “subprime”, descortinaremos que a felicidade da gordura americana (e não estamos a falar do seu insaciável apetite pela “fast-food”) se baseava em axiomas deslocados da realidade. George Soros foi cruel, ao dizer que os EUA viviam do que o resto do mundo poupava e consumiam acima do que produziam. Como se fossem uma espécie de aristocratas com problemas de crédito. Mas isso era derivado da sua moeda, o dólar, ser a moeda de reserva internacional. Quando essa expansão de crédito causava tempestades, as autoridades centrais injectavam liquidez e estimulavam a economia por outros meios. O próprio coração do sistema financeiro – baseado na circulação interbancária, a começar pelo empréstimo – entrou em colapso. E os perigos de recessão (e inflação) nos EUA estão aí a bater à porta. Não é por acaso que Joaquin Almunia dava uma estocada letal no inchaço americano: “Não é sobre uma recessão global. É sobre uma recessão nos EUA (…) com o seu défice corrente, com o seu défice fiscal e a falta de poupanças”. Mas não deixa de ser curioso como a crise é vista das capitais dos mercados emergentes. Na terça-feira, num debate do canal Aljazeera, um dos intervenientes dizia que nesses países se separava cada vez mais a globalização em duas áreas: o comércio global é bom, mas a finança global não é tão boa assim. Quem falava assim estava em Nova Delhi.

A piada popular
O inspector-geral da ASAE foi à Assembleia da República dizer que apenas cumpre ordens. Imaginava-se que as ideias não viessem da sua cabeça. Ele é apenas um funcionário que faz com que quem pense (algures em São Bento, talvez em Bruxelas, presume-se que em Marte) possa dormir descansado porque a imoralidade não passará em Portugal. O inspector-geral diz que a sua afirmação de que metade dos restaurantes portugueses deveriam, ou poderiam, fechar, “não foi feliz”. Efectivamente toda a acção da ASAE não tem sido feliz. Mesmo que contratassem os célebres “senhor Feliz e senhor Contente” dos gloriosos tempos de Nicolau Breyner e Herman José, não conseguiria ser. A ASAE espalhou o medo. E isso é tudo o que não se deve ter numa democracia. Não é por acaso que Cavaco Silva, na cozinha conventual do Mosteiro de Arouca, deixou cair a piada: “E então, a ASAE ainda não veio cá”? É este o estado da ASAE neste país: passou de entidade pública a anedota privada.

Diferentes…
José Sócrates e o ministro Mário Lino disseram que só tiveram conhecimento do documento do LNEC a 9 de Janeiro. O presidente do LNEC diz que o Governo conhecia as conclusões desde 19 de Dezembro. Lá Sócrates terá de vir dizer como quando mostrou matematicamente que o Tratado de Lisboa era diferente do anterior Tratado europeu e por isso não era preciso referendar, conforme tinha sido promessa do PS: um era uma coisa, e o outro era outra coisa. Igual, mas diferente. Aqui é o mesmo: um era conclusões, o outro é um documento. Diferentes…

Plenitude musical
É um disco surpreendente. A beleza de “À Deriva” (CD Lisboa Records) dos Novembro, uma banda lisboeta de Miguel Filipe, transborda para todos os sentidos. Deixa-nos ser envolvidos numa cortina sonora de seda, onde todos os sentidos são postos à prova. Há um curioso choque urbano no disco que, por exemplo, é dado pelo confronto entre a guitarra portuguesa e a guitarra eléctrica. Mas todo esse sentimento tem a ver com a própria lógica do ruído urbano e do seu pretérito equilíbrio com a memória portuguesa que continua a navegar por aqui. Este é um disco que marca o ano. E que marca a nova Lisboa.

A imagem dos vinhos
Os vinhos são elementos fundamentais da cultura portuguesa. Preservar o que o seu aroma e paladar transmite da nossa memória é essencial. Mas nem por isso deixa de, numa época de comércio global, saber jogar com a imagem e a comunicação sem fronteiras. É por isso que é muito interessante ir ao site www.quintadoscarvalhais.eu ver alguns dos néctares que se produzem no Dão. Está lá tudo: a vida e a imagem. Para saber escolher. Do Duque de Viseu ao Encruzado estão lá todos os vinhos que se abrigam debaixo da mesma capa de segredos. A descobrir.

Recordar o Vietnam
Um livro que ultrapassa muito a dimensão da chamada “literatura de guerra” é “Tree of Smoke” de Denis Johnson. É uma obra esmagadora sobre a inteligência (dos seres humanos e sobre a “comunidade da inteligência”, ou seja, os serviços secretos de informação), percorrendo paulatinamente os anos entre a morte de John F. Kennedy e 1970. É um livro sobre os segredos sinistros da guerra, sobre os desejos de um coronel que quer enviar relatórios distorcidos, para que tudo acabe numa “tree of smoke”, que é como quem diz, num cogumelo em forma de nuvem nuclear. Um livro tremendo que deveria ser editado em Portugal.

Sem comentários: